Lacunas e inter-relações: entre o Direito e o Dever do Patrimônio Cultural.

Seria ousado definir o que é Patrimônio Cultural no Brasil, sobretudo ao pensarmos sobre a sua amplitude e aquilo que carrega de sentidos e entendimentos, nem sempre democráticos ou justos. A própria noção de Patrimônio é muitas vezes confundida com a de propriedade1 seja por haver diversos mundos sociais e culturais (GONÇALVES, 2009, p.26) ou por distâncias e lacunas nem sempre mensuradas. A manutenção e a perpetuação de sentidos desconexos do Patrimônio democraticamente desejado contribuem para a sedimentação e a incompletude no que diz respeito não apenas a entendimentos, mas de sua atribuição com relação à noção de totalidade e ao que essa como possibilidade permite alcançar.

Com relação ao objeto em questão, o Patrimônio Cultural, não podemos deixar de mencionar a noção correlata de preservação cujos sentidos e interpretações também abrem parênteses ou lacunas com relação ao seu sentido democrático, justo (social e economicamente) e eficaz.

A essas noções teóricas entendemos também a necessidade de estabelecermos parâmetros históricos - por vezes ocultados, esquecidos e mesmo ignorados por múltiplas razões – e também os estóricos2 como aqueles das práticas, contribuindo assim para a propagação de equívocos nem sempre assimilados como tal.

A estrutura que este artigo, portanto, propõem procura trazer a tona algumas indagações a respeito dos sentidos possíveis do Patrimônio Cultural em relação não apenas aos direitos, mas também dos deveres a eles atrelados.

O caso apresentado parte de levantamentos reais e empíricos acerca da realidade da cidade de São João Del Rei, em Minas Gerais e de nossa atuação no Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural dessa mesma cidade.

Referenciando-nos aos conceitos-chave de ação, espaço e tempo utilizados como mapa e estrutura em nossa tese de doutorado3, os retomamos aqui no sentido de evidenciar algumas discussões e simultaneamente com o propósito de orientar certos debates e inquietações ora em análise.

Num primeiro momento realizamos uma análise interpretativa dos modelos de cartas (notificações extrajudiciais) do enviadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) aos proprietários de imóveis situados em área central, incluindo o entorno do único sítio histórico a ser preservado no perímetro urbano. Esta análise parte de questões que dizem respeito direto aos conceitos de ação, espaço e tempo que inter-relacionados procuram promover entendimentos e diálogos que considerem tais dimensões, não apenas com relação à noção de Patrimônio, mas também com relação à Cultura e à preservação.


Dimensões da açãoespaçotempo: institucional, são joanense e desde a primeira metade do século XX.


Retomando a dimensão local de nossa exposição, a criação do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural da cidade de São João Del Rei foi criada em fins da década de 1990, ou seja, antecedendo em poucos anos a criação do Estatuto da Cidade e mesmo do Ministério das Cidades.

Situando a questão localmente, apresentamos adiante e parcialmente um trecho genérico das cartas (notificações extrajudiciais) enviadas pelo IPHAN com relação à alteração de volumetria de edificações (em geral de acréscimo de pavimentos sem prévia autorização), situadas na área central da cidade, no entorno imediato da delimitação da área preservada como Patrimônio Cultural:

(...)

5. Condição de proteção do imóvel: Bem integrante do entorno do Conjunto Arquitetônico e Urbanístico tombado da cidade de São João Del Rei/ MG, de acordo com o processo N° 68-T-38, Inscrição n°1, Livro de Belas Artes, fls. n°2, datada de 04/03/1938.

6. Considerando que o imóvel em questão está sob especial proteção federal, o ato praticado constitui ilícito e infração penal, com fundamento no artigo 18 do Decreto-lei n° 25, de 30 de novembro de 1937, c/c o artigo 159 do Código Civil e artigo 185 do Código Penal.

Decreto-lei n° 25, de 30/11/37 – Art. 18: "Sem prévia autorização do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que lhe impeça ou reduza a visibilidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob pena de ser mandada destruir a obra ou retirar o objeto, impondo-se neste caso multa de cinqüenta por cento do dano causado."


Quanto aos conteúdos da carta de notificação e à lei em questão, observamos que ela não acrescenta fatos adicionais, em outros momentos, sobre a inclusão daquela edificação ao corpo tombado, de dados que demonstrem documentalmente ao proprietário o que ocorreu com o imóvel, se os proprietários permanecem os mesmos ou qualquer campanha que por ventura possa ter esclarecido a população sobre tal fato nesses 74 anos decorridos desde o tombamento da área central e das conseqüências atreladas ao seu entorno.

Dando prosseguimento à análise dos conteúdos da carta, temos:


7. Assim sendo, o Superintendente Regional do Instituto do Patrimônio Histórico Artístico e Nacional, no uso de suas determinações legais DETERMINA:


7.1. Demolição completa do terceiro pavimento, no prazo máximo de 60 (sessenta) dias;

7.2. Execução de nova cobertura, num prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, contados após o término da demolição acima especificada, com telhado cerâmico embutido em platibanda de 50 cm de altura. O telhado deverá ser de quatro águas com cumeeira perpendicular à rua e estrutura apoiada na laje do segundo pavimento;

7.3. Remoção do revestimento de pedra da fachada e aplicação de reboco liso, num prazo máximo de 30 (trinta) dias, contados após a execução do novo telhado.


Se não fosse verdadeira a determinação acima colocada poderíamos dizer que poderia consistir de um trote. Levando em consideração a desigualdade sócio-econômica-cultural da população uma determinação como essa não pode corresponder à realidade. Se o Patrimônio Cultural é um bem nacional e democrático, como exigir que os custos da alteração de formas sejam arcados em tão curto prazo?

Aprofundando as discussões sobre o que é solicitado aos moradores em relação à descaracterização dos bens no entorno da coisa tombada apontamos para a condição atual da realidade dos fatos, como a inexistência de: 1. inventário dos imóveis da área histórica; 2. de leis de uso e ocupação do solo aprovada e aplicada; 3. de fiscalização; 4. de campanhas de informação e conscientização; 5. das tais instabilidades políticas e de gestão urbana; 6. a existência de um Plano Diretor que não é nem seguido ou sequer reavaliado); e 7. da distância temporal entre a existência do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural, do escritório local do IPHAN e das obras realizadas pelos moradores/ ex-proprietários.


Dimensão corpocidade


Nesse segundo momento analisamos, com base em conversas informais, a idéia de (patrimônio cultural) que têm alguns proprietários de imóveis localizados no entorno da área histórica de São João Del Rei e suas implicações históricas e políticas, num recorte analítico que propõe a suspensão conceitual desse mesmo patrimônio cultural em face de direitos e de deveres.

As colocações mais comuns ouvidas nas conversas a respeito da preservação do patrimônio cultural de São João Del Rei questionam diversas ações e obras ocorridas ao longo do tempo na cidade e cujas soluções teriam sido aprovadas mesmo estando fora do estabelecido pelas próprias instituições de aprovação no âmbito municipal.

Os casos mais citados foram o do Edifício São João, localizado na área central da cidade, possuidor de 10 (dez) andares e o do edifício anexo ao casarão do escritório técnico do IPHAN em São João Del Rei, que por construir (no presente) nos fundos do lote uma nova edificação que pode ser avistada da rua - mas não em sua totalidade -, acaba sendo observado apenas "por fora", naquilo que é imediato e sem mediações que sejam capazes de desvelar ao cidadão comum uma compreensão maior e que abranja toda a sua dimensão (formal, legislativa, programática – quanto aos usos - e conceitual).

Outro questionamento das pessoas com as quais conversamos diz da delimitação apenas parcial daquilo que representa o Patrimônio Cultural da cidade, pois apenas sua área central é tombada e seus bairros periféricos, muitos deles também antigos e com edificações e espaços representativos e significativos da cultura São Joanense estariam à mercê de quaisquer transformações: "Porque aqui não pode e duas ruas para lá pode?" ou ainda "Porque fulado de tal pode e eu não posso?"

Nesse sentido, uma pergunta também ainda sem resposta é a do porque de um Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural se restringir apenas parcialmente quanto àquilo que é patrimônio e ao que deve ou não ser preservado numa cidade? Porque não incorporar o patrimônio cultural da cidade em sua totalidade?

Com relação à exigência de projeto para alteração, retificação, reforma e mesmo novas construções, este fato além de ser desconhecido por grande parte das pessoas com as quais conversamos, por aquelas que o sabem, não conhecem nenhum e/ ou acreditam não poder pagar pelos seus serviços.

Recorrendo ao caso Pelourinho em Salvador, quando da ação pública no espaço herdado o processo de gentrificação urbana foi e permanece uma de suas maiores críticas.

Quanto a São João Del Rei, perguntamos: quais os direitos do patrimônio e para quem são? É um direito ou um dever endividar-se para cumprir a lei? Independente da condição sócio-econômica-cultural? E os benefícios fiscais, são apenas para os bens tombados ou deveriam também ser compartilhados com as edificações de seu entorno, já que representativos e dentro do contexto de patrimônio cultural? E os modos de vida, também são patrimônio cultural? De que modo se relacionam formas e conteúdos (matéria e vida) urbanos, nesse sentido?


Espaço não dimensionado


No último momento analítico procuramos trazer algumas formulações empíricas acerca da idéia de patrimônio cultural em face de inexistência de legislação, dados e instrumentos locais que, em casos como os supracitados, não permitem o avanço de ações mais amplas e impossibilitam legalmente ações consideradas de direito.

Ao fazermos um breve recuo procuramos articular diferentes esferas e instâncias como a Federal e a Estadual, considerando ainda mudanças, substituições, descartes e retomadas, ou seja, as instabilidades políticas e de gestão como fatores que ao serem desconsiderados não correspondem à realidade urbana, social, econômica e cultural dos momentos que antecedem a solicitações feitas no presente.

Apenas para situar defasagens e entendimentos, algumas noções e instrumentos de gestão urbana como o planejamento e o urbanismo são modernos, o que quer dizer que são historicamente recentes, e procuram praticamente reestruturar e redefinir não apenas discussões como as do patrimônio e da preservação, mas também das práticas até então vigentes. Desde a criação destes instrumentos e noções não apenas como tentativas disciplinatórias, mas também como ferramentas de controle e regulação espacial aconteceram diversas mudanças com relação tanto aos seus entendimentos, mas, sobretudo com relação a outras noções como a de modos de vida, de espaço público e de território.

Com relação aos processos de urbanização e ao aumento de população urbana no Brasil4 ocorrem mudanças drásticas, não apenas com relação às formas do espaço urbano, mas também com relação aos conteúdos dessas formas, às questões legais dessas mudanças, ao planejamento e aos projetos, nem sempre includentes ou eficazes no sentido de atenderem à demandas sociais, infra e estruturais.

Procurando situar desentendimentos legislativos e executivos, seja institucional, física ou jurídica (públicos e privados) dizemos que a ausência, o autoritarismo ou as instabilidades5 face ao planejamento, aos projetos e aos programas articulados ou não, contribuíram e permanecem, muitas vezes, contribuindo para a ineficácia ou ainda para desentendimentos com relação à questão urbana, incluindo aí aquelas referentes à preservação e ao patrimônio.

O que queremos dizer é que em nível Federal as regulamentações criadas com fins de preservação do Patrimônio Cultural num determinado momento (fins da década de 1930), sua aplicação, difusão e apropriação não necessariamente ocorreram de modo amplo e homogêneo no território nacional e ao longo do tempo. As perdas, esquecimentos, ocultamentos e a negligência face às questões históricas e às desigualdades (econômicas, sociais, técnicas, informacionais e culturais) não deveriam ser ignoradas em processos democráticos e que se participativos não deixam de lado sua função social.

Algumas perguntas aqui expostas procuram dimensionar e inter-relacionar, não apenas diferentes instâncias, mas também ações e compreensões.

De que modo as questões do Ministério da Cultura estão na atualidade inter-relacionados às questões do Ministério das Cidades?

Não seria esta inter-relação outra questão fundamental, de articulação entre ambas, visando amplitude e a cooperação entre esforços?

De que modo o próprio IPHAN ao exigir certas regularizações face às mudanças e transformações nas formas urbanas - que também ocorreram nas técnicas, nos modos de vida, na educação, na legislação -, considera as defasagens e diferenças sócio-culturais desde a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) e ao longo do tempo?

Como cumprir com certos deveres se o próprio direito de acesso às informações básicas não é devidamente difundido?

Com relação às formas, mais do que apenas a preocupação com suas aparências - por não corresponderem talvez, a uma imagem ideal desejada de cidade, é preciso levar em conta a realidade dos fatos e as condições de vida dos moradores dessas mesmas formas.

A exigência de projeto para a alteração dessas formas nem sempre é respeitada, muito mais, talvez, por desconhecimento

Se por um lado a existência de parâmetros legais não impede certas formalizações e transformações do espaço urbano que não contribuem para sua devida melhora, indagamos sobre o que faltaria de fato para que desiguais aprovações e concessões não ocorram e que possibilitem algum referencial mais preciso sobre aquilo que pode ou não ser produzido e transformado no corpo da cidade.

Há lacunas de entendimento, recuo dos moradores face aos órgãos e instituições que deveriam para além de exigir cumprimento de lei, informar de modo amplo a população, atuando caso a caso e não genericamente, dado que as lacunas e intevalos entre direitos e deveres contém também ausência de abstração, ausência de chão, de livre interpretação em direção a uma reconstrução e recondução das ações na contemporaneidade.



Referência Bibliográfica


GONÇALVES, José Reginaldo S. O patrimônio como categoria de pensamento. IN ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (Org.) Memória e Patrimônio: escritos contemporâneos. RJ: Lamparina, 2009.


NASCIMENTO. Adriana G. do. (arte) e (cidade): Ação Cultural e Intervenção Efêmera. Tese de doutorado desenvolvida no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 2009.

______________Territórios do CorpoEspaçoTempo: Quem Planeja? IN Anais do XIVENAPUR, 2011. (No prelo)


RUBIM, Antonio A.C. Políticas culturais do governo Lula /Gil: desafios e enfrentamentos. IN RUBIM, Antonio A.C; BAYARDO, Rubens (Org.) Políticas culturais na Ibero-América. Salvador: EDUFBA, 2008.


SANTOS, Milton. Técnica, Espaço, Tempo: Globalização e Meio Técnico-científico-informacional. 5ªEd. SP: EDUSP, 2008 [1989].



1 Aqui tomamos de empréstimo as contribuições de José Reginaldo Santos Gonçalves (2009, p. 27-28 e p.31) no artigo O patrimônio como categoria de pensamento, no qual o patrimônio e sua importância não se restringem às modernas sociedades ocidentais, resultam de processos de transformação e em constante mudança e que permite relacionar o material ao imaterial (ou intangível), renovando e ampliando seu sentido.

2 Ainda que a noção de estória esteja suprimida da Língua Portuguesa brasileira recolocamos aqui seu papel fundamental como léxico que permite outras interpretações para além da dimensão histórica (hegemônica). Na Língua Inglesa essa noção é entendida como fundamental para designar narrativas sobre eventos reais ou imaginários e também para diferenciar as questões históricas das estórias não necessariamente consideradas como fatos relevantes, marcantes ou mesmo hegemônicas, permitindo também que a criação de outras interpretações, leituras e análises eventuais ou factuais sejam possíveis.


3 (arte) e (cidade): Ação Cultural e Intervenção Efêmera é o título da tese de doutorado desenvolvida no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), defendida em 2009 sob a orientação de Ana Clara Torres Ribeiro. Parte da pesquisa desenvolvida dentro do projeto de Cooperação Internacional CAPES-COFECUB Políticas Culturais e Territórios Urbanos coordenado por Paola Berenstein Jacques (UFBA) e Henri-Pierre Jeudy (CNRS). O arquivo digital encontra-se no sistema Minerva da UFRJ: http://www.minerva.ufrj.br/.

4 Milton Santos apresenta em 1989 uma comunicação (publicado originalmente em Cadernos do IPPUR, 4 em 1992, editado e republicado diversas vezes no livro Técnica, Espaço e Tempo) no qual apresenta uma série de dados sobre os processos de urbanização no Brasil e das mudanças e transformações de um país agrário num país predominantemente urbano e as conseqüências destas na velocidade em que ocorreram.

5 Antonio Rubim ao estruturar seu texto sobre as políticas culturais no Brasil estabelece uma amarração conceitual na qual evidencia historicamente a ausência, o autoritarismo e a instabilidade como três os momentos-chave dessa trajetória histórica desde o Império, atravessando a Nova República e o período de redemocratização nacional até o ano de 2008.


(Artigo publicado nos Anais do Congresso Luso-Brasileiro de Direito ao Patrimônio Cultural, ocorrido em Ouro Preto, em 18 e 19 de março de 2011).

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