O Muro: (entre) os sistemas e os sentidos do urbano.


O texto a seguir foi apresentado no seminario do evento Muros: Territorios Compartilhados e originalmente publicado no caderno de texto em abril de 2012.



Boa noite, em primeiro lugar quero agradecer ao convite para participar desta mesa-redonda, e a oportunidade de poder falar sobre uma questão tao cara como a da qualidade de vida urbana através de temas como os aqui em debate, do muro, como territorio compartilhado e das poéticas visuais no espaço urbano.
Para esta mesa-redonda imaginei um percurso que tratasse do tema proposto  e que fosse iniciado pela noçao de cidade, atravessasse a de espaço e o sentido de urbano.
Selecionamos algumas definições, as quais, se não especificas sobre a cidade, oferecem certos aspectos que ampliam o sentido de tal realidade. Nas concepções e definições de cidade uma das mais antigas, das quais nos referenciamos, diz do encontro ou da relação entre aquilo que é fixo e aquilo que é móvel/ movente, entre civitas e urbs, entre cidadãos e estrutura urbana.
Ainda dentro dos paradigmas possíveis de cidade entendemos que ha aqueles da utopia, das cidades ideais da qual Brasília de certa forma faz parte, e ainda aqueles referentes à cidades existentes e reais que vão desde a cidade do sonho à do pesadelo, a dos desejos (de consumo), a dos afetos (trocas) até aquela da violência e do medo (impotência). Todas em uma. Ainda que nenhuma das definições anteriores seja totalmente integra.
A cidade contém cidades, estas entendidas como lugares de desigualdades e de diferenças que compoem um vasto campo não necessariamente apreensivel e/ ou compreensivel. E na amplitude do campo cidade a problematica do muro em relação às poéticas visuais nos parece demasiadamente complexa para ser analisada imediatamente. 
Se o imediato diz respeito aos sentidos e à percepção, ao reconhecimento e à identidade, do ponto de vista moderno diz da percepção prioritariamente tecnocrática, baseada em normas urbanísticas modelares, que tratam o plano a partir de um modelo, seja de cidade ideal e/ ou como um projeto acabado. E, seu maior instrumento é o zoneamento urbano e a idéia de setorização funcional.
Dessa forma desconsidera-se, imediatamente, qualquer dimensão que reconheça conflitos, e ainda a realidade da desigualdade das condições de renda e sua influência sobre o funcionamento dos mercados imobiliários urbanos.  O que temos como cidade trata-se de um projeto que em geral se opõe à política – campo de explicitação dos conflitos – e que portanto não permite o diálogo (evidente em governos centralizados e centralizadores – como ex.: os períodos de ditadura).
De um ponto de vista oposto, complementar e nao excludente temos o mediato, que seria, então, a forma e/ ou modo como os projetos deveriam acontecer no espaço urbano e na cidade. Assim deveriam ser questionados ao serem propostos, formulados e/ou concebidos.
A  partir de uma perspectiva mediada, entendemos que a participação social independente de qual e como aconteça, aInda que incompleta ou parcialmente, é que deveria ser o motor de transformaçoes necessarias e/ ou desejadas.
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Desenho de Le Corbusier: O desastre contemporâneo, ou a liberdade da organização espacial?

Ao entendermos que a mediação é sujeito também das políticas publicas e dos instrumentos de lei, a própria idéia de participação ao ser justaposta àquela da função social, possibilita alguns indícios sobre os entendimentos e os sentidos de outras questões como a da paisagem urbana, a do direito à cidade e mesmo da mediação com relação à mídia e de sua propagação pelo espaço.
Dentro dos princípios da geografia nova de Milton Santos a percepção do espaço parte de seu entendimento como “totalidade, como uma instância social, no mesmo nível da instância econômica e da instância cultural, ideológica e política; e que desta maneira a dialética social não se estabelece apenas no espaço, mas se realiza com o espaço.
Se a  lógica espacial diz respeito à noção de simultaneidade - em relação ao espaço-tempo -, ao associarmos à esta idéia outra que diz de envolvimentos simultâneos[1], entendemos que assim a apreensão dimensional estaria auxiliada e favoreceria a compreensão, não apenas do tridimensional cartesiano, mas do multidimensional, por incorporar experiências e vivências, inclusive trocadas e compartilhadas, e portanto sensiveis e qualitativas.
Com relação aos possíveis entendimentos da cidade como acumulação de ação-espaço-tempo Paul Virilio abre seu livro  L’ art à perte de vue (2005, p. 9), afirmando que se o século XVII foi da matemática, o XVIII pertenceu às ciências físicas e o XIX à biologia.
Com relação ao tempo e as tantas definições apresentadas sobre o século XX, Virilio enfatiza uma delas, que seria a sensibilidade do presente relacionada ao medo. E que em seu ápice ele, o medo, não poderia ser compreendido como uma ciência, mas como uma técnica que teria se tornado também em arte contemporânea, de destruição mutua, também por seu entendimento como cultura dominante.
E esta cultura dominante, muitas vezes paralizada e violentada pela ausência de coragem perante o medo favoreceria a simplificação e o empobrecimento da percepção face aos níveis e dimensões do espaço urbano.
Dentro dos debates atuais sobre os sistemas de espaços livres (2010) levantamos algumas considerações relacionadas ao tema em debate, dentre os quais a prerrogativa de que num mundo no qual as questoes que se sobressaem sao as questoes quantitativas, aquelas aparentemente banais, em geral relacionadas às categorias qualitativas, nao sao levadas a serio.
A partir da idéia de sistemas de espaços livres e nao apenas da oposicao entre publico x privado considera-se que seriam nestes espaços que estariam as possibilidades para a vivencia coletiva e onde se estruturaria a relaçao individual e coletiva, entre o povo e o poder.
Falar de muro é falar das fronteiras, dos limites, mas também de sua transposição fisica, simbolica e afetiva.
Assim, ao compreender-se o espaço como um conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações, desta postura decorrem os elementos gerais de uma analise espacial dialética e sistêmica: os fixos e os fluxos, a paisagem e a sociedade, as horizontalidades e as verticalidades, a tecnoesfera  e psicoesfera, os embates entre o lugar e o mundo (Santos, 1996), entre as racionalidades hegemônicas e comunicacionais na constituição dos lugares (Queiroga, 2001)”.
Entendemos, que na atualidade o espaço presente em nossas cidades atravessa uma período de mutação, que pode ou não ser denominado ou classificado de em processo, ou mesmo em construção. E, que portanto não necessariamente os espaços podem ser denominados de urbanos.
Os muros na cidades podem ser vistos como parte de sua linguagem e/ ou expressão que não apenas representam mas podem significar o modo como as relações e ações se espacializam, oferecendo condição e subsidio para que políticas sejam realizadas no sentido do urbano.
Com relação à questão urbana Henri Lefebvre (2008, p.75) ao tratar o fenômeno urbano como mensagem, como leituras do texto e da escrita urbanos, a saber do plano de um lado, e, de outro, das “coisas urbanas”, sensíveis, visíveis, legíveis no terreno ratifica o entendimento do léxico na estruturação da linguagem do espaço que não necessariamente é urbano.
Se o urbanismo é um conceito moderno, a noção de planejamento urbano também é.  E a condição do urbano na atualidade diz dos estágios deste processo em construção.  Se são fixas as estruturas do espaço, ao menos não podem ser entendidas como permanentes, dadas as possibilidades de sua transformação. Se no momento refletem o medo, a partir de políticas que atuem não apenas nas formas, mas em seus conteúdos, as possibilidades de mudança passam a ser reais.
E a política aqui não deve ser entendida apenas como ação do Estado, mas como ação cuja presença política tem um sentido que se aproxima àquele do existencialismo sartriano e cuja premissa seria dialética, teórica e prática, embasada por noções que norteiam a ação.
Seria nesse sentido que o modo e não o medo deveria ter papel orientador sobre questões que lidam com noções espaciais e urbanas e para as quais dependendo de como movimento, experiência e diferença podem ser entendidos e/ ou percebidos respostas para estas questões reverteriam sob a égide da idéia de fronteira a ser descortinada, não de limite.
Neste sentido falar de poéticas visuais me parece absolutamente pertinente para tratar de cultura relacionada ao território não apenas como linha de raciocínio acerca de questões urbanas, mas também de questões poéticas como considerações que deveriam ser também políticas.
Seria impossível tratar de poética visual sem levantarmos aqui a noção de cultura visual, como diferenças e mesmo como similaridades entre percepções e compreensões  simbólicas das formas e do espaço.
A poética visual permite, em nosso entendimento, a leitura do modo como percebemos o mundo, como nos apropriamos, damos sentido e transformamos sonhos e realidade.
Se a percepção como relação de troca contribui para a formação de repertorio, a partir do momento em que tudo o que nos rodeia apresenta determinados aspectos visuais, será este o arcabouço que fatalmente ira conduzir os estímulos e as referencias. Se a forma é limitada pela incapacidade de haver relações exemplares ou modelares, seja de conduta ou de mobilidade social, ha também redução da sociabilidade e do domínio de problemas comuns da realidade cotidiana, assim como dos serviços públicos. Se ausência de trocas de conhecimento e de informação estão limitadas, há ausência de participação, de acesso a bens (materiais ou simbólicos) e mesmo de apropriaçao de sentidos e de espaços (Katzman, 2001).
A apropriação de sentidos estaria em nosso entendimento diretamente relacionada com a noção de representação, seja do espaço de representação  e/ou das representações do espaço (Lefévbre,  2008; Amaral, 2003).
E aqui nos detemos no entendimento destes dois movimentos com sentidos não necessariamente opostos. Primeiro com relação a representação como significado de modo de presença e em seguida da relação que nos implica ao espaço, e daquilo que ocorre através do espaço.
Estes entendimentos são ou podem ser construídos, e dizem também do sentido da função social - apresentada pelo Estatuto da Cidade - seja da arquitetura, do espaço urbano, livre, publico e/ou privado.

Poéticas visuais no espaço urbano = ¹Paisagem urbana
Se os muros são territorios compartilhados, o são tanto para o bem quanto para o mal, tanto como forma permanente, mas também como forma transitoria.  E é neste sentido que esta se abre como possibilidade de transformação, poética e visual. Transformadora da imaginação, da subjetividade e de abstrações no sentido das praticas visuais e portanto também das praticas espaciais e urbanas.
A questão aqui presente colocada por este evento diz da partilha estabelecida pela convivência, pela troca e pelo encontro compartilhado e de riquezas ocultas, adormecidas e/ou esquecidas pelo império do medo.
Os desafios urbanos e poéticos são muitos.
E creio que não haja dissonância entre esta temática e aquela proposta pela ultima bienal de Arte de SP, cujo tema é Arte e Política.
Falar do muro como poética visual, no Brasil, me parece crucial seja por tudo aquilo que entendemos imediatamente sobre sua forma e imagem, ou ainda, mediatamente, por questoes que cada vez mais pertmitem que a cidade se aproxime tanto de sonhos, quanto de pesadelos, dadas as diferenças e desigualdades encontradas pelo territorio, e ao longo do tempo.
Para que sentidos de política, seja visual e/ ou territorial, sejam compartilhados deve, antes e/ou durante, serem apropriados e difundidos. Se começam como ações, já estão em jogo, como o caso do projeto MUROS, e mesmo de outros projetos artísticos, culturais e sociais que atuam na cena urbana.
Levando em consideração as definições apresentadas para cada um dos séculos passados, dizemos que para o século XXI a definição continua em aberto e que portanto estaria em nossas mãos defini-lo com o legado que pretendemos perpetuar.
Qual ou quais seriam?


Bibliografia

AMARAL, André. O espaço da representaçao e as representaçoes do espaço. IN : Arte & Ensaio, ano X, n. 10, 2003.
KATZMAN, R. Seducidos y Abandonados: El Ailamento Social de los Pobres Urbanos, Revista de la CEPAL, 75. deciembre de 2001.
LEFÉVBRE, Henri. A Revolução Urbana. BH : EditoraUFMG, 2008.
NASICMENTO, Adriana G. do. (arte) e (cidade) : açao cultural e interveçao efemera. Tese de doutorado, RJ : IPPUR/ UFRJ, 2009, vide IN : www.minerva.br
VIRILIO, Paul. L’ Art à perte de vue. Paris: Galilée, 2005.
TÂNGARI, Vera et ali (org). Coloquio Nacional quapa-sel/ Sistemas de Espaços Livres, O cotidiano, apropriaçoes e ausencias. RJ: UFRJ/ FAU/ PROARQ, 2009.


[1] Vide nossa tese de doutoramento: (arte) e (cidade): açao cultural e  intervençao efêmera, realizada no Instituto dePesquisa em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) in: www.minerva.ufrj.br

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